Entrevista Com Gente Morta: Júlio César, o populista romano

Um homem controverso: aristocrata e líder popular, ditador e ídolo das multidões, representante da elite romana e odiado pelos ricos. Enfim, um dos personagens mais polêmicos da História

por Pedro Paulo Funari*

Filho de uma família tradicional e endinheirada, Caio Júlio César (100-44 a.C.) passou a infância, digamos, com o povo. O contato com a plebe se deu graças ao casamento de sua tia Júlia com o líder popular Mário, um sujeito de origem humilde que se tornou general e foi responsável pela profissionalização do exército romano. Inspirado no tio, Júlio César também resolveu seguir a carreira militar, sempre metido no meio da tropa e cortejando as massas.

Em pouco tempo no posto de general (58-51 a.C.), ele conquistou toda a Gália e violou a Constituição romana ao levar suas tropas para a Itália, iniciando uma guerra civil contra os aristocratas até sua vitória e entrada triunfal em Roma (45 a.C.). Em fevereiro de 44 a.C., recebeu o título de ditador perpétuo, mas foi assassinado pelos senadores no dia 15 de março.

A morte, no entanto, não pôs fim à fama de Júlio César. Ele se tornou um dos personagens mais polêmicos da História. Seu nome acabou virando até sinônimo de imperador – kaiser e tsar eram os imperadores alemães e russos, assim como “cesarismo” passou a referir-se ao poder político derivado da mistura da força militar com a popularidade. Nesta entrevista, regada por um bom vinho tinto, o aristocrata comenta algumas das muitas controvérsias sobre sua vida, obra e legado.

Pedro – O senhor assistiu ao filme Alexandre? O Plutarco diz que o senhor chorou, ao comparar-se com Alexandre, pois ele aos trinta e poucos anos já havia conquistado o mundo e o senhor nada...
Júlio – Sobre o filme, melhor nem comentar... A verdade é que estava no fim do mundo. Naquela época, a Espanha não era nem parte da Europa, como hoje – e não me parecia descabido comparar-me a Alexandre, como minhas conquistas posteriores confirmaram.

Pedro –Por falar em conquistas, após anos de combate, a vitória final sobre o líder gaulês Vercingetorix deve ter sido um alívio!
Júlio –Encontrei no comandante gaulês um rival à altura, grande general, que preferiu render-se a sacrificar ainda mais o seu povo. Ele, como eu, prezava a liberdade e, ao final, o resultado foi uma amizade entre gauleses e romanos. Ainda durante a guerra, vi muitos filhos de soldados romanos com gaulesas.

Pedro –Esse é um tema fascinante: a atração pelas mulheres. O senhor enamorou-se de muitas damas, mas todos se perguntam se foi mesmo o nariz de Cleópatra que o encantou. Ela era mesmo tão bela?
Júlio –Foi Pascal, esse gaulês do século 17, que inventou essa história do nariz. Conheci Cleópatra já cinqüentão, ela com vinte aninhos, enrolada em um tapete... Mas o que me encantou mesmo foi sua presença, sua conversa, muito madura para a idade. Atirada, me disse no primeiro encontro a sós que eu tinha fama de superexperiente no amor... Em suma, uma bela mulher.

Pedro –Bem, deixando um pouco de lado esses detalhes íntimos, os seus adversários o acusaram de ter desobedecido a Constituição, ao marchar armado para a Itália, após sua vitória na Gália. E depois, não hesitou em levar adiante uma guerra civil...
Júlio –O que queriam? Que aceitasse voltar como simples cidadão privado, após ter ampliado o domínio romano para uma imensa área ao norte, antes fora da civilização? Foi só uma provocação dos reacionários, mas que permitiu que meu programa político de reconciliação fosse levado adiante. Por resistência dos aristocratas, não tive como evitar a guerra.

Pedro –A ditadura, então, não foi negativa? As acusações de que o senhor queria ser rei, tudo mentira?
Júlio –Mas veja só: a ditadura me foi conferida, justamente, para evitar as lutas entre facções. Nada a ver com as ditaduras posteriores, quem me concedeu isso foi o senado. No entusiasmo que se seguiu à concessão da ditadura perpétua, em14 de fevereiro (44 a.C.), no dia seguinte me ofereceram, em praça pública, a coroa real e eu não aceitei. Mas achava que era necessário mudar a república, dando mais poder ao governante, para que houvesse o consenso... Este era, desde havia muito, meu programa político para salvar o estado das lutas civis.

Pedro –Em um mês, o senhor seria assassinado. Por que dispensou a escolta? Não desconfiou do bom afilhado Brutus, só percebeu a traição na hora da facada... Ou pensou como Getúlio Vargas, que era melhor morrer e deixar que seus seguidores voltassem nos braços do povo?
Júlio –Foi tudo muito sórdido. Aqueles que eu havia poupado, com os quais havia sido clemente – essa era minha palavra de ordem, a clemência –, mostraram-se insensíveis ao avanço que havíamos todos tido, graças ao fim das guerras civis. Até Cícero, que me havia elogiado, comemorou o complô. Quando Brutus se aproximou para desferir seu golpe, ele que eu havia sempre ajudado como a um filho, reagi e disse: “Até tu, seu piralho”. Mas não foi essa a versão que se espalhou. Havia dispensado a escolta justamente porque sabia que, se ousassem me matar, o povo se levantaria, como se levantou. O Getúlio sabia do meu assassinato quando se suicidou... Outro que se inspirou em mim!

Pedro –O senhor também foi autor de uma obra literária e militar das mais lidas de todos os tempos, A Guerra da Gália, e desenvolveu uma política cultural liberal, tolerante com seus críticos. Foi fácil conciliar cultura e ditadura, uma mistura um tanto incomum?
Júlio –Nunca separei poder e saber... Freqüentei as melhores escolas, me senti sempre mais à vontade com o grego do que com o latim. Não é pedantismo, é a verdade. Me acusaram de escrever A Guerra da Gália como propaganda política, mas apenas queria mostrar minha folha corrida de serviços ao povo romano, minhas façanhas militares em prol da república romana. Mas é uma obra sem pretensões... Quando pedi que reformassem o calendário, era porque estava uma balbúrdia e precisávamos de algo prático. Meu programa era o consenso e, por isso mesmo, nunca me importei com as críticas dos poetas e os incentivava, mesmo quando falavam besteiras sobre mim.

Pedro –Uma questão permanece controversa: quem deveria ser seu herdeiro, Marco Antônio ou Otávio?
Júlio –Outra discussão inútil. Marco Antônio foi grande companheiro, desde as campanhas da Gália, um grande general em campo de batalha. Era um homem de briga. Mas Caio Otávio era meu sobrinho, um rapaz franzino em cuja formação me empenhei e a quem adotei. Otávio admirava minha busca de consenso e era meu legítimo herdeiro. Não foi à toa que deu continuidade à minha obra.

*Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP) e Professor Titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas.

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