Quadro do espanhol Modesto Brocos, destaque em exposição no Museu Nacional de Belas Artes, é analisado em livro sobre racismo na pintura brasileira.
Por Murilo Roncolato
Em um verbete do livro Dicionário Crítico da Pintura no Brasil (1988) dedicado ao quadro A Redenção de Cam (1895), o jornalista, crítico e professor José Roberto Teixeira era “muitíssimo bem pintada”, mas indubitavelmente também “de uma das pinturas mais reacionárias e preconceituosas da Escola Brasileira”.
A crítica carregada sobre a tela do espanhol Modesto Brocos (1852-1936), radicado no Brasil por mais de 40 anos, tem sua razão de existir.
A pintura foi feita pouco depois de declaradas a abolição da escravidão e da instituição da República no país. No caminho para um suposto progresso, o Brasil adotava a Europa branca como referência. Sua população, no entanto, pouco se assemelhava à europeia.
O negro representava, aos olhos de boa parte da intelectualidade, o passado e o atraso. Surgiram no século 19 as chamadas teorias científicas do branqueamento, propondo como solução para o problema misturar a população negra com a branca, incluindo os imigrantes europeus, geração por geração, até mudar o perfil “racial” do país, de negro a branco.
O quadro “A Redenção de Cam”, reverenciado e premiado em sua época, é considerado uma representação visual dessa tese. Literalmente no caso do médico e diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda (1846-1915). No Congresso Universal das Raças, realizado em Londres, em 1911, a pintura ilustrou um artigo de sua autoria sobre branqueamento. Ele assim descreveu a imagem: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”.
Racismo à vista
Para entender mais sobre o quadro, conversamos com a a historiadora e antropóloga Tatiana Lotierzo, autora de uma tese sobre a obra que deu origem ao livro Contornos do (In)visível: Racismo e Estética na Pintura Brasileira (1850-1840), lançado no final de 2017 pela Edusp.
“Procurei mostrar, no livro, que o quadro é mais do que uma ilustração da tese de Lacerda, apesar dessa comunicação intensa entre ambas as coisas. A ‘Redenção de Cam’ tem sua própria tese no marco racismo oitocentista, um pensamento que se exprime como um modo de ver, uma perspectiva que é oferecida ao olhar de quem a observa”, diz Lotierzo.
A maldição sobre Cam e a sua redenção
O título do quadro remete ao mito bíblico da maldição lançada por Noé sobre seu filho Cam (ou Cã). Diz a história que Noé dormiu embriagado de vinho. Cam, seu filho, expôs a nudez do pai aos irmãos como zombaria. Ao acordar, o pai então amaldiçoou Canaã, filho de Cam, a ser “servo dos servos”. Há inclusive versões que descrevem Canaã e os descendentes de Cam como negros.
“O contexto de difusão do mito bíblico sobre a maldição de Noé é o do início da chamada Era Moderna, quando a cristandade europeia buscava formas de justificar a escravização de habitantes do continente africano, sob o marco do cristianismo”, diz Lotierzo.
O mito é reinterpretado por Brocos que aponta, seguindo as teorias da sua época, que a salvação – ou “redenção” – dos descendentes de Cam se daria por meio da sua extinção, por efeito do branqueamento. “Uma das associações que aparecem com mais frequência na imprensa do período, em textos escritos por intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, entre outros, é justamente a da morte como redenção, para as pessoas negras. São textos de muita violência, pois concebem que a extinção dessas pessoas – inclusive pela via do embranquecimento – é o caminho para a emancipação”, diz a autora.
“O quadro de Brocos, ao apelar para a ideia de redenção, faz a mesma coisa. É sem dúvida uma tela racista e concordo plenamente com os autores que a definem como preconceituosa. Creio que entender como a pintura mobiliza suas ferramentas para reforçar esse tipo de argumento é importante, pois ajuda a ver como outras imagens podem fazer uso próprio das mesmas ferramentas, sinalizando caminhos de ruptura crítica frente ao racismo”. – Tatiana Lotierzo
Lendo o quadro
O quadro, que “remete à imagística cristã da natividade”, mostra, da esquerda para direita, uma senhora negra, descalça sobre um chão de terra ,que ergue as mãos e os olhos aos céus ao lado de uma mulher, provavelmente sua filha, de tom de pele mais claro, que segura seu bebê, branco, no colo. E um homem branco à sua direita.
As três personagens representariam as três gerações necessárias para que o Brasil se tornasse um país branco. O homem branco à direita, ao que tudo indica, o marido da mulher ao centro e pai da criança, olha para o menino com admiração. Ele é o elo que permite o branqueamento completo dos descendentes da senhora, possivelmente escrava e, assim, a sua salvação.
Para Lotierzo, Brocos “faz uso de um mecanismo perverso ao tentar atribuir um voluntarismo às mulheres negras como agentes do embranquecimento, como se elas estivessem celebrando essa possibilidade”.
Segundo a autora, é marcante no Brasil um tipo de racismo que pode escapar às estatísticas e que se expressa em diversas discriminações no cotidiano. “Isso remete ao que pesquisadores tem chamado de branquitude ou branquidade, ou seja, as diferentes formas de percepção do mundo e autopercepção de si que manifestam a prerrogativa de que ser branco é um privilégio que habilita outros privilégios”.
Para Lotierzo, a prevalência dessas percepções e suas implicações “é um dos aspectos mais marcantes do racismo à brasileira, diante do qual se fazem urgentes ações que resultem numa tomada de consciência e na reparação das desigualdades raciais”.
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