Por mais que pareça assustador, a figura da criança nem sempre existiu na história da humanidade.
Para o poeta Manoel de Barros, “a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças”. Para Casimiro de Abreu, a infância era “a aurora” de nossas vidas, um tempo querido, “o despontar da existência”. Mas não é só de exaltação que vive a literatura que trata da infância, em “O Ateneu”, de Raul Pompeia, seu personagem Carlos afirma que essa doce lembrança da infância é uma hipocrisia, “eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas”.
Não é somente na literatura que encontramos diferentes olhares para a infância. Historicamente, o lugar ocupado pelas crianças na sociedade também passou por muitas transformações até se chegar na perspectiva atual.
Etimologicamente, a palavra infância vem do latim, “infantia”, e refere-se àquele que ainda não é capaz de falar. Na sociedade atual, considera-se a infância o período que se estende do nascimento até os 12 anos de idade. Entretanto, ao longo da história, o conceito de infância passou por uma série de variações decorrentes do modo como a sociedade era organizada.
Baseado nessa noção de que o “infans” era aquele que ainda não era dotado de fala, Platão atribuía à criança um estado animalesco e primitivo que só seria alterado através da domesticação trazida pela educação. O que distinguia, portanto, o adulto da criança era a sua capacidade racional.
Uma das principais referências para se pensar no conceito de infância é a obra do pesquisador francês Philippe Ariès. Segundo ele, esse conceito foi construído historicamente e ganhou o sentido que temos hoje apenas no mundo moderno.
Conforme Ariès, durante muito tempo, a criança foi tratada como um adulto em miniatura, partilhando das mesmas atividades que os mais velhos, vestindo-se da mesma maneira e ouvindo conversas sobre todos os assuntos, sem haver qualquer noção de uma inocência infantil.
Essa visão do pesquisador francês, entretanto, é questionada por outros estudiosos, como Moysés Kuhlmann Jr, por exemplo, que afirma que desde a Idade Média já havia uma preocupação com as crianças, ainda que o conceito tal como o conhecemos não existisse.
Entre os séculos XII e XVII, de acordo com , a criança era vista como um ser substituível, caso não tivesse uma função utilitária na sociedade, por isso, era comum que crianças que nasciam com algum problema fossem descartadas, pois não estariam aptas ao trabalho. A partir dos sete anos, elas já eram inseridas na vida adulta e exerciam as mesmas tarefas que seus pais.
Essa visão começa a mudar no século XVII, quando surge um novo modelo familiar, centrado na figura paterna e voltado para a formação e salvação das crianças através da educação e da família. A religião passa a ter um papel determinante nessa nova perspectiva, introduzindo um olhar pueril para a infância e a necessidade de uma educação moral e disciplinar que as livrasse do pecado.
No século XVIII, Rousseau reforça a ideia da inocência infantil e passa a defender uma educação livre que torne as crianças bons cidadãos. Olhar que será aprofundado no século XIX, a partir da visão idealizada do Romantismo, segundo a qual a criança é um ser dotado de inocência e pureza. Essa concepção, no entanto, restringe-se às crianças pertencentes às classes sociais mais elevadas. Para as crianças pobres, o que resta é uma vida marcada pelo trabalho pesado, pela miséria e pela exploração.
Embora haja divergências entre os estudos a respeito da história da infância, todos os trabalhos mostram que, no mundo Ocidental, a perspectiva sobre o lugar social da criança foi se modificando conforme a época, os costumes da sociedade e a classe social analisada.
Atualmente, temos, sim, um olhar para a infância tal qual o proposto por Mia Couto, em que esse período da vida é tomado pela surpresa e pelo encantamento típico da imaginação infantil, mas temos também uma realidade sombria, que marca a vida de muitas crianças, vítimas da miséria, do abandono e de histórias marcadas pela exclusão.
Via Iconografia da História
Referências:
ARIÉS, P. “História social da criança e da família”. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.
BRAGA, Douglas. “A infância como objeto da história um balanço historiográfico”. USP – Ano VI, n. 10, p. 15-40, 2015. www.revistas.usp.br
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Infância e pensamento”. In: GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “Sete aulas sobre linguagem, memória e história”. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
HEYWOOD, Colin. Uma história da infância: da Idade Média à época contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed, 2004.
KUHLMANN, JR.M. “Infância e educação infantil: uma abordagem histórica”. Porto Alegre: Mediação, 1998.
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