Funcionalismo público, as mentiras que a elite te conta

Proporcionalmente, Brasil tem bem menos servidores públicos que EUA e países da Europa. Apenas 13,7% do nosso PIB paga salários; 38% vai para o bolso de banqueiros e rentistas. Mas velha mídia insiste que há um “inchaço da máquina pública”…

por José Álvaro de Lima Cardoso do site Outras Palavras.

Nos últimos tempos, no contexto mais amplo de ataques ao setor público, tem se intensificado também as investidas contra o funcionalismo público. Dentre outros objetivos, esta visa colocar a população contra os servidores. Se a população avaliar que o servidor é privilegiado, que não quer trabalhar, que ganha muito, fica mais fácil desmontar os serviços de saúde e educação, objetivos inconfessáveis da campanha. Regra geral tal campanha, a exemplo da campanha em geral pela privatização de estatais, é alicerçada em mentiras, senso comum e mistificações.

Por exemplo, se dissemina sem dó o diagnóstico de que o Estado no Brasil é muito inchado, que existem muitos servidores públicos, serviço público é um “cabide de empregos”, etc. O fato é, que o Brasil é um dos países que menos tem funcionários públicos, na comparação com a população total de trabalhadores do país. Nessa comparação fica atrás, por exemplo, de quase todos os países europeus, que têm em média entre 10% a 15% do total de empregados no serviço público. Segundo o Atlas do Estado, do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os vínculos de trabalho do setor público no Brasil aumentaram mais de 82% nas últimas duas décadas, saindo de cerca de 6,3 milhões de trabalhadores em 1995 para 11,5 milhões em 2016. Esse total inclui todos os segmentos: servidores concursados, estatutários, regidos pela CLT, e os de cargos comissionados. O total de vínculos, inclusive, é diferente do número de funcionários, visto que uma mesma pessoa pode ter mais de um vínculo. O fato é que, mesmo com a elevação nos últimos anos, o número de servidores no Brasil é inferior à média dos países desenvolvidos.

Se pegarmos os dados de 2017, verificamos que no Brasil cerca de 12,1% da população ocupada trabalhava no setor público. Este percentual equivale a dois terços dos 18% de média das nações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e mesmo em relação a países mais neoliberais, como os EUA (15,2%) e Reino Unido (16,4%). Países estes, que vem desmontando seus estados de bem-estar social, que algum dia já foi mais forte (especialmente no caso do Reino Unido).

O Brasil gastou no ano passado o equivalente a cerca de 13,7% do PIB com salários do funcionalismo público, incluindo todas as esferas e poderes. Dos 11,4 milhões de vínculos de trabalho no setor público, uma boa parte atua em áreas sociais, como saúde e educação. Segundo dados da RAIS/2018, metade dos funcionários públicos ganhava até 3 salários mínimos (R$ 2,9 mil, considerando o valor do mínimo de 2018). Apenas 3% ganhava mais do que 20 salários mínimos (R$ 19,1 mil). Um funcionário público brasileiro ganha, em média, 8% a mais do que um trabalhador que exerce função semelhante no setor privado.

Segundo dados do Banco Mundial, num conjunto de 53 países, na média internacional, o funcionário público ganha 21% a mais que o trabalhador do setor privado. Portanto, no Brasil, a diferença é bem menor. A diferença para mais, de 8% em funções similares no setor público, não significa nada, considerando que no setor privado os salários de uma forma geral são extremamente baixos. O setor público tem obrigação mesmo de melhorar os salários, até porque faz exigências maiores de qualificação.

É verdade que nos poderes da República há muita diferença salarial, o que, frequentemente, confunde o observador. No Executivo, por exemplo, onde se concentram professores, médicos, policiais, apenas 25% dos trabalhadores ganham mais de R$ 5 mil. No poder Legislativo, onde estão vereadores, deputados, senadores e seus funcionários, mais de 35% recebe mais de R$ 5 mil. No Judiciário, onde trabalham juízes, promotores, funcionários de fórum, o percentual dos que ganham acima de R$ 5.000 sobe para mais de 85%.

É evidente que o setor público brasileiro contém importantes distorções salariais, que precisam ser corrigidas. Os 16,2 mil juízes em atividade no Brasil ganham, em média, R$ 46 mil mensais e três em cada quatro recebem mais do que o teto do funcionalismo público, de R$ 39.293 mil. Atualmente um auxílio-moradia de um juiz está custando R$ 4.377,00. Praticamente duas vezes o salário médio de todos os ocupados no Brasil. É um negócio vergonhoso, uma clara distorção que precisa ser corrigida.

Apesar desse tipo de distorção (certamente existem outras), esta não é a realidade da maioria dos servidores públicos. Como vimos, metade dos funcionários públicos ganha até 3 salários mínimos. Porém, a partir dessas distorções salariais, se construiu uma montanha de mentiras a respeito do funcionalismo público, que se dissemina no seio da sociedade, visando atingir os serviços públicos de uma forma geral, com intenção de privatizá-los. É uma verdadeira máquina de trituração da reputação dos servidores públicos. São ataques sórdidos, que obedecem a uma estratégia internacional de destruição do serviço público, desencadeada, dentre outros, por grandes empresas multinacionais, atrás de bons negócios.

Enquanto se desenvolve a estratégia de desmonte dos serviços públicos, o Brasil continua destinando quase metade do orçamento federal para o pagamento de juros e o rolamento da dívida pública federal. No ano passado o governo federal destinou aos banqueiros e rentistas a soma de R$ 1,038 trilhão ou 38,27% de todo o orçamento público federal. O governo Bolsonaro, segundo o Tribunal de Contas da União, gastou apenas R$ 11,4 bilhões, dos R$ 38,9 bilhões, da verba emergencial destinada ao combate da pandemia. Isso no instante em que o Brasil emplaca 3.460.413 contaminados e 111.000 mortos (isso, registrados). Enquanto isso, pela Lei Orçamentária Anual – LOA/2020, estão previstos R$ 409,6 bilhões para o pagamento de “Juros/Encargos da Dívida Pública” neste ano.

São quase meio trilhão de reais. Isso representa 1,1 bilhão de reais todo santo dia, somente este ano. Se transfere todo ano, bilhões e bilhões para algumas centenas de rentistas (que em boa parte nem moram no Brasil). Somente os gastos com os juros e encargos da dívida pública deste ano já totalizam um valor superior ao que o governo espera arrecadar com a torra de patrimônio púbico neste ano. E, praticamente, nem se fala nisso. Querem entregar a Eletrobrás, um patrimônio estratégico, por 18 bilhões e destinam diariamente um R$ 1,1 bilhão para os rentistas, em nome de uma dívida que não resiste a uma auditoria pública.

O debate sobre uma reforma administrativa deve seguir caminho contrário ao que a extrema-direita e os golpistas estão querendo trilhar. Ou seja, o debate deve ser feito a partir das necessidades do país e de seu povo, em busca do desenvolvimento econômico e social. Mas está claro que é impossível fazer tal debate com o atual governo, que na verdade quer destruir os serviços públicos e transformar o Brasil definitivamente numa colônia dos EUA. As questões do debate não são meramente técnicas e sim também políticas, ligadas à correlação de forças. A discussão sobre o Estado brasileiro, funcionalismo e serviço público tem que ser precedida da retomada da democracia no país.


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