Para diferenciar uma Maria de outra ou dezenas de Josés, os medievais usavam apelidos sobre a aparência, a origem ou a profissão do sujeito
por Bolívar Lamounier
Como seria a vida diária nas grandes cidades brasileiras se as pessoas não tivessem sobrenomes? E, pior ainda, se não existissem documentos de identidade, registros de impressões digitais, nada disso? Imaginemos, por exemplo, uma loja que vendesse a crédito. Como faria para distinguir entre centenas ou milhares de clientes que se identificassem todos como “João”? Hoje isso daria numa confusão infernal. Mas era assim até por volta do século 12. Claro, não existiam metrópoles como as de hoje, mas Paris, por exemplo, já tinha 200 mil habitantes. A Idade Média do século 12 era ainda um mundo de identidades pessoais difusas, mal definidas, muito diferente desse outro mundo que hoje conhecemos, no qual tudo o que se refere ao indivíduo, rico ou pobre, é minuciosamente registrado, do nascimento até a morte.
No ano 1000, para tomarmos um marco de tempo bem preciso, sobrenomes simplesmente não existiam. A identificação de um indivíduo no meio social se fazia pelo prenome e por um complemento qualquer. Uma prática comum era designar as pessoas como “fulano filho de fulano”. Por exemplo, Pedro Álvares equivalia a “Pedro filho de Álvaro”; David Davidovich seria “David filho de David”. Outra forma assaz difundida era o acoplamento de apelidos variadíssimos ao nome. Os mais comuns faziam alusão à origem geográfica dos portadores (da Costa, do Monte), a aspectos físicos ou a traços morais que lhes eram atribuídos. Ou ainda à atividade ou ofício de que eles viviam. Entre o século 12 e o 15, tais apelidos vão paulatinamente se tornando permanentes, isto é, transformando-se em sobrenomes de família. Como o poder público não registrava os nascimentos, cabia ao padres (nem sempre letrados) escrever o que ouviam do nome dos declarantes (ainda menos letrados), abrindo-se assim o campo para inúmeros erros e variações ortográficas.
Na Antiguidade, houve casos esparsos de desenvolvimento do sobrenome. O mais conhecido é sem dúvida o Império Romano, no qual as pessoas da elite costumavam ter três nomes; por exemplo, Caio Júlio César. Com o colapso do império, verifica-se porém uma involução. O nome composto desaparece na esteira das invasões germânicas. Mais alguns séculos e o nome único – ou o nome seguido apenas de um apelido – reaparece por toda parte. Inicialmente esse retrocesso não constituiu um problema muito sério, pois tudo tinha involuído. O comércio de longa distância praticamente desaparecera, a moeda mal circulava e, mais importante, não existiam mais cidades grandes. A maioria das pessoas vivia em lugarejos que reuniam apenas algumas centenas de habitantes. Nessas pequenas comunidades, a homonímia não representava problema sério. Mas foi-se tornando grave à medida que a população crescia e muitos indivíduos migravam de uma comunidade a outra, ou passavam a residir em centros urbanos de maior porte.
A multiplicação dos apelidos por si só evidenciava a insuficiência do nome único. O sobrenome começa a surgir em função de anseios de identificação pessoal, mas também por pressão da realidade política. Conforme a descentralização característica da era feudal vai sendo suplantada por estruturas mais amplas, governos, senhores feudais e autoridades eclesiásticas cada vez mais insistem em cadastrar seus súditos. A identificação individual se torna necessária tanto por razões militares (recrutamento de soldados) como fiscais (cobrança de tributos). Essa etapa intermediária ganhou impulso durante o chamado “Pré-Renascimento” (os séculos 11 a 13), no meio de importantes mudanças econômicas e culturais e da crescente importância das cidades.
Pouco a pouco, os apelidos foram se tornando sobrenomes. Em Paris, por exemplo, havia grande número de pessoas identificadas por apelidos que se referiam ao lugar de origem, como “Langlais” (o inglês), “Lespaniol” (o espanhol), “Litalien” ou “Lombard” (designando a procedência italiana), “Lallemand” ou “Lallement” (o alemão). Entre os alusivos a traços pessoais, eram muito comuns apelidos como Lejeune (o jovem, o filho mais novo), Leblond (o louro), Legrand (pessoa volumosa ou alta), Lepetit ou Lecourt (pessoa pouco volumosa ou de baixa estatura), Lelong (provavelmente pessoa alta e magra), da mesma forma que Bajo, Gordo, Rubio, Calvo e outros em espanhol e analogamente em outros idiomas. Todos esses ainda existem.
São também interessantíssimos os antigos apelidos derivados de ofícios. Um censo realizado em Paris em 1294 registra “allier” (vendedor de alho), “avenier” (vendedor de aveia), “falconnier” (pessoa que cria ou vende falcões), “fritier” (vendedor ambulante de peixe frito). Todo país europeu tem hoje entre os seus cidadãos muitos com sobrenomes de “padeiro”, “açougueiro”, “ferreiro”, “moleiro”. Como tais ofícios eram importantíssimos nas cidades européias medievais, existiam centenas ou milhares de pessoas conhecidas por tais apelidos. Posteriormente, o apelido se “desgruda” do ofício e se transforma em sobrenome hereditário. Meunier e Mounier, por exemplo, derivados do ofício de moleiro, são muito comuns em francês, assim como Miller, em inglês, e Muller, em alemão. Se o presidente Luís Inácio da Silva tivesse nascido no nordeste da França, talvez tivesse se tornado conhecido como “Lula, Eisenhower”, uma vez que Eisenhower vem de Eisenhoffer (metalúrgico, em alemão). O piloto Schumacher talvez tenha tido algum antepassado fabricante de sapatos (shoe-maker), assim como Zapatero, o primeiro-ministro espanhol. E na ascendência de Jean-Paul Sartre, o célebre filósofo, deve ter havido alguém que fazia belos ternos, uma vez que sartre em francês (como sarti em italiano e sastre em espanhol) significava alfaiate.
por Bolívar Lamounier
Como seria a vida diária nas grandes cidades brasileiras se as pessoas não tivessem sobrenomes? E, pior ainda, se não existissem documentos de identidade, registros de impressões digitais, nada disso? Imaginemos, por exemplo, uma loja que vendesse a crédito. Como faria para distinguir entre centenas ou milhares de clientes que se identificassem todos como “João”? Hoje isso daria numa confusão infernal. Mas era assim até por volta do século 12. Claro, não existiam metrópoles como as de hoje, mas Paris, por exemplo, já tinha 200 mil habitantes. A Idade Média do século 12 era ainda um mundo de identidades pessoais difusas, mal definidas, muito diferente desse outro mundo que hoje conhecemos, no qual tudo o que se refere ao indivíduo, rico ou pobre, é minuciosamente registrado, do nascimento até a morte.
No ano 1000, para tomarmos um marco de tempo bem preciso, sobrenomes simplesmente não existiam. A identificação de um indivíduo no meio social se fazia pelo prenome e por um complemento qualquer. Uma prática comum era designar as pessoas como “fulano filho de fulano”. Por exemplo, Pedro Álvares equivalia a “Pedro filho de Álvaro”; David Davidovich seria “David filho de David”. Outra forma assaz difundida era o acoplamento de apelidos variadíssimos ao nome. Os mais comuns faziam alusão à origem geográfica dos portadores (da Costa, do Monte), a aspectos físicos ou a traços morais que lhes eram atribuídos. Ou ainda à atividade ou ofício de que eles viviam. Entre o século 12 e o 15, tais apelidos vão paulatinamente se tornando permanentes, isto é, transformando-se em sobrenomes de família. Como o poder público não registrava os nascimentos, cabia ao padres (nem sempre letrados) escrever o que ouviam do nome dos declarantes (ainda menos letrados), abrindo-se assim o campo para inúmeros erros e variações ortográficas.
Na Antiguidade, houve casos esparsos de desenvolvimento do sobrenome. O mais conhecido é sem dúvida o Império Romano, no qual as pessoas da elite costumavam ter três nomes; por exemplo, Caio Júlio César. Com o colapso do império, verifica-se porém uma involução. O nome composto desaparece na esteira das invasões germânicas. Mais alguns séculos e o nome único – ou o nome seguido apenas de um apelido – reaparece por toda parte. Inicialmente esse retrocesso não constituiu um problema muito sério, pois tudo tinha involuído. O comércio de longa distância praticamente desaparecera, a moeda mal circulava e, mais importante, não existiam mais cidades grandes. A maioria das pessoas vivia em lugarejos que reuniam apenas algumas centenas de habitantes. Nessas pequenas comunidades, a homonímia não representava problema sério. Mas foi-se tornando grave à medida que a população crescia e muitos indivíduos migravam de uma comunidade a outra, ou passavam a residir em centros urbanos de maior porte.
A multiplicação dos apelidos por si só evidenciava a insuficiência do nome único. O sobrenome começa a surgir em função de anseios de identificação pessoal, mas também por pressão da realidade política. Conforme a descentralização característica da era feudal vai sendo suplantada por estruturas mais amplas, governos, senhores feudais e autoridades eclesiásticas cada vez mais insistem em cadastrar seus súditos. A identificação individual se torna necessária tanto por razões militares (recrutamento de soldados) como fiscais (cobrança de tributos). Essa etapa intermediária ganhou impulso durante o chamado “Pré-Renascimento” (os séculos 11 a 13), no meio de importantes mudanças econômicas e culturais e da crescente importância das cidades.
Pouco a pouco, os apelidos foram se tornando sobrenomes. Em Paris, por exemplo, havia grande número de pessoas identificadas por apelidos que se referiam ao lugar de origem, como “Langlais” (o inglês), “Lespaniol” (o espanhol), “Litalien” ou “Lombard” (designando a procedência italiana), “Lallemand” ou “Lallement” (o alemão). Entre os alusivos a traços pessoais, eram muito comuns apelidos como Lejeune (o jovem, o filho mais novo), Leblond (o louro), Legrand (pessoa volumosa ou alta), Lepetit ou Lecourt (pessoa pouco volumosa ou de baixa estatura), Lelong (provavelmente pessoa alta e magra), da mesma forma que Bajo, Gordo, Rubio, Calvo e outros em espanhol e analogamente em outros idiomas. Todos esses ainda existem.
São também interessantíssimos os antigos apelidos derivados de ofícios. Um censo realizado em Paris em 1294 registra “allier” (vendedor de alho), “avenier” (vendedor de aveia), “falconnier” (pessoa que cria ou vende falcões), “fritier” (vendedor ambulante de peixe frito). Todo país europeu tem hoje entre os seus cidadãos muitos com sobrenomes de “padeiro”, “açougueiro”, “ferreiro”, “moleiro”. Como tais ofícios eram importantíssimos nas cidades européias medievais, existiam centenas ou milhares de pessoas conhecidas por tais apelidos. Posteriormente, o apelido se “desgruda” do ofício e se transforma em sobrenome hereditário. Meunier e Mounier, por exemplo, derivados do ofício de moleiro, são muito comuns em francês, assim como Miller, em inglês, e Muller, em alemão. Se o presidente Luís Inácio da Silva tivesse nascido no nordeste da França, talvez tivesse se tornado conhecido como “Lula, Eisenhower”, uma vez que Eisenhower vem de Eisenhoffer (metalúrgico, em alemão). O piloto Schumacher talvez tenha tido algum antepassado fabricante de sapatos (shoe-maker), assim como Zapatero, o primeiro-ministro espanhol. E na ascendência de Jean-Paul Sartre, o célebre filósofo, deve ter havido alguém que fazia belos ternos, uma vez que sartre em francês (como sarti em italiano e sastre em espanhol) significava alfaiate.
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